sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O Roubo do Cofre de Adhemar de Barros - Julho 1969

A velha VPR e a ALN souberam da existência de um tesouro. Parecia lenda de pirata. O primeiro a ser avisado foi Marighella. Um militante falou-lhe de um cofre escondido no apartamento paulista de Ana Benchimol Capriglioni, mitológica amante e depositária de propinas guardadas pelo ex-governador Adhemar de Barros (foto). Conhecido pelo slogan “Rouba mas faz” governara o estado de São Paulo por três vezes e roubara como poucos. O cofre, que se supunha pesar duzentos quilos, estava no 14º andar de um edifício da avenida São Luís. Em poucas semanas a ALN estocou quatro submetralhadoras, três fuzis FAL, revólveres, pistolas e granadas, e o plano marchava quando Adhemar morreu em Paris e Marighella suspendeu a operação.
Não se sabe precisamente quantos cofres teve Adhemar, mas um deles estava na casa do irmão de Ana Capriglioni Benchimol (Aarão Benchimol Burlamaqui nota do blog), no morro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Sorte da VAR-Palmares. Um militante da organização, sobrinho da poderosa senhora (Gustavo Schiller, nota do blog), tinha o mapa: a “caixinha do Adhemar” estava no fundo de um armário embutido do segundo andar. Começou assim “A Grande Ação” Vendedores de enciclopédias e pesquisadores de audiência de televisão visitaram o palacete, enquanto o sobrinho caiu na clandestinidade.
Na tarde de 18 de julho um comando da VAR subiu as ladeiras de Santa Teresa. Eram onze homens e duas moças. Chegaram dizendo-se agentes da Polícia Federal em busca de material subversivo, “a mando do general” Entraram na casa nove “federais” e duas camionetes. Na rua ficaram um Aero-Willys e os encarregados da cobertura, um dos quais montado numa metralhadora Schmeisser ponto 30. Um grupo subiu ao segundo andar para procurar o esconderijo da “caixinha” enquanto outro furava os pneus dos carros guardados na garagem, desligava os tele fones e amarrava os criados e moradores. Os contratempos foram poucos. A cozinheira não se intimidou e se recusou a sair de perto do fogão, porque “se eu deixo essa carne estragar, a patroa me mata”. A copeira se negou a apressar o banho. De acordo com o plano o cofre deveria descer num carrinho, mas rolou pela escadaria de mármore.  Colocado numa das camionetes, foi levado para um aparelho em Jacarepaguá. A operação durou 28 minutos. Um mecânico trazido de Porto Alegre acendeu o maçarico de uma solda de acetileno e começou a cortar a “caixinha”. Feito o primeiro buraco, inundou-se o cofre para que o dinheiro não se queimasse.
Você acha que tem um milhão aí dentro?”, perguntou Juarez
Guimarães de Brito, economista que vinha do Colina e dividia seu tempo entre a VAR e serviços de pesquisa para a Pontifícia Universidade Católica. Era o Juvenal e fora o organizador da “Grande Ação”.
Se tiver cem mil já está bom demais”, respondeu Alberto (José de Araújo Nóbrega, um ex-sargento que num lance de sorte escapara da polícia em Itapecerica da Serra). Havia sete pessoas em torno do cofre quando se rasgou uma fatia de sua blindagem. Juarez riu. Era uma botija de dólares. Notas pequenas, grandes, soltas ou em pacotinhos de um banco suíço. Estenderam-se varais pela casa, ligaram-se ventiladores, e pôs-se o tesouro a secar.
Contaram 2,6 milhões de dólares. Tinham acabado de dar o maior golpe da história do terrorismo mundial. Os principais grupos de com batentes surgidos desde o final do século x haviam arrecadado, em conjunto, algo como 17 milhões de dólares. A VAR, de uma só tacada, faturou o equivalente a 15% do centenário esforço internacional. Como dizia a modinha ademarista dos anos 50:
Quem não conhece?
Quem nunca ouviu falar?
Na famosa “caixinha” do Adhemar
Que deu livros, deu remédios, deu estradas
Caixinha abençoada!
Assim como não se sabe quem colocou tamanha fortuna no bolso de Adhemar de Barros, também é difícil saber onde ela foi parar. Há duas versões para o destino desse butim. Uma resulta das diversas narrativas dos militantes da VAR e das facções em que ela viria a se subdividir. Outra, das contas do CIE. Partem de totais diferentes, mas são semelhantes. Um pedaço, que pode ter variado entre 800 mil e 1 milhão de dólares, foi entregue a um diplomata argelino. Outro, estimado entre 250 mil e meio milhão, foi depositado na Suíça. Assim, algo entre 1 e 1,6 milhão de dólares ficou no Brasil. É certo que um espertalhão francês embolsou parte da poupança externa do grupo. Segundo o CIE, em 1974 restavam na Europa 120 mil dólares. Em 1998, Maria do Carmo Brito, a Lia, dirigente da VPR e viúva de Juarez, o comandante da ação, informou ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho que só ela sabe o nome da pessoa a quem repassou o controle do dinheiro entregue aos argelinos, mas não o revelou.
A surpreendente conexão argelina ia além da VAR. Enquanto os cubanos carregavam toda a fama, o embaixador Hafid Keramane, veterano militante da FLN e autor de um livro sobre as torturas francesas em Argel, operava uma representação diplomática acreditada tanto junto ao governo como aos terroristas. A embaixada americana suspeitava da existência de contatos dos argelinos com o Colina e supunha que tivessem ligações com o MR-8.31 Semanas antes de ser preso, em julho de 1969, o Bom Burguês estivera em Paris buscando veteranos da rede da Guerra da Argélia, pois pretendia multiplicar sua verba revolucionária através de operações de comércio internacional que poderiam render, a seu juízo, 300 mil dólares anuais. Depositara uma pequena fortuna no Handels Bank, na Suíça, e instalara sua família num apartamento do elegante “XVIème” parisiense.32 Tentara sem sucesso um encontro com Marighella. Sua ideia era impulsionar uma vertente da luta armada livre das influências cubana e chinesa.
Adhemar de Barros
com a esposa
A VAR-Palmares embolsou o butim, mas Ana Capriglioni e os herdeiros do governador não reclamaram à polícia um só centavo. Sustentaram que o cofre estava vazio.  O governo, supostamente empenhado no combate à corrupção (que enchera o cofre) e à subversão (que o esvaziara), não se interessou em descobrir como os 2,6 milhões de dólares chegaram à cafua de Santa Teresa. Era dinheiro roubado, tomado a empreiteiros e bancas de bicho, mas o ministro da Justiça, Gama e Silva, já fornecera um atestado de bons antecedentes a Adhemar, fazendo circular a informação de que nada havia contra ele na Comissão Geral de Investigações. Jamais um larápio pilhado dispôs de tanta proteção.
A rapina do cofre foi um sucesso financeiro e político. Pelo raciocínio segundo o qual era preciso reunir uma base material para permitir que a luta armada desse um salto qualitativo, os 2,6 milhões de dólares deveriam queimar a etapa de acumulação capitalista, ampliando o recrutamento de quadros e antecipando o começo da sonhada guerrilha rural. Afinal, num só golpe, coletou-se o equivalente a cinco vezes a renda de todos os 41 assaltos feitos no país desde o início das “expropriações”, em dezembro de 1967.  Parte da cúpula da organização deixou devagar por pequenas casas de subúrbio e se instalou numa chácara em Jacarepaguá, equipada com carro estrangeiro e falso motorista. Se o problema fosse dinheiro, o caminho para o socialismo encurtara. Como observou Marco Aurélio Garcia, em trabalho pioneiro que há décadas ilumina a história do período, “o ‘dinheiro não trouxe a felicidade’ às organizações de esquerda revolucionária”. A VAR-Palmares se estilhaçou de pois de alguns meses, e, salvo a montagem de duas bases de treinamento de guerrilhas, uma das quais sob o comando de Lamarca, as ações subsequentes mantiveram-se naquilo que Herbert Eustáquio de Carvalho, o Daniel, dirigente da VPR, chamou de “dinâmica da sobrevivência”.
 Excerto do Livro "A Ditadura Escancarada"
 Elio Gaspari.  
São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

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